A urgência de redescobrir um tesouro chamado António Campos

Por estes dias, o festival Curtas Vila do Conde, dirigido por Miguel Dias, Nuno Rodrigues e Mário Micaelo, dedica uma justa mostra ao cinema de António Campos, um acervo que é importante redescobrir. Hoje (às 20h) passa a segunda sessão.

Na celebração do centenário do nascimento de António Campos (1922-1999), o Curtas Vila do Conde (que decorre até ao próximo dia 17) oferece a rara possibilidade do contacto com um cinema feito da necessidade obstinada de filtrar a realidade do seu tempo através do olho da câmara. “Guardião da memória” chamou-lhe Jean-Loup Passek. Talvez por Campos desenvolver um certo carinho pelo seu próprio ofício, um modo de fazer primitivo, artesanal, autodidacta, quase sempre com um trabalho de não actores, por vezes até com uma câmara emprestada, mas ao mesmo tempo também visceral e voluntarioso. Evocando um mundo que era seu. Memórias (da Leiria, das salinas de Aveiro) que eram suas. Quase sempre, em isolamento. Sem estudos de cinema, apesar da amizade com Manoel de Oliveira e Paulo Rocha. Algo que talvez ligue a esta relativa ausência de partilha e reflexão, durante tanto tempo, sobre a sua obra. Défice que o Festival de La Rochelle supriu, dedicando, em 1994, uma retrospectiva a este maestro. (De referir que La Rochelle — que celebrou por estes dias a sua 50.ª edição – com a retrospectiva “Une Histoire du Cinéma Portugais” com um belo texto do historiador Bernard Eisenschitz). Entretanto, o ano 2000, a Cinemateca cumpre o seu papel e dedica-lhe um merecido ciclo.
António Campos é o tal realizador modesto e “marginal”, que quis “ficar à margem e que só nessa margem se encontrou”, como defende Catarina Alves Costa no seu trabalho (“Falamos de António Campos”). E marginal também porque trabalhou sempre forma descentralizada, dos circuitos de Lisboa e do Porto, mais perto da ruralidade, de um modo de vida naquela altura em transição (como em “Gente da Praia da Vieira”), ou em extinção (como no caso de “Vilarinho das Furnas”), a braços com uma modernidade, (“A Invenção do Amor”), mas também a emigração. E ainda comprometido com o caminho da Revolução, seja a descrever os murais que foram ilustrando os muros da capital e um pouco por todo o país (“Paredes Pintadas da Revolução Portuguesa”), ou até a proximidade da polícia política (“A Invenção do Amor”). Apesar da sua obra ter estado sempre muito próxima de um recorte documental, e mesmo amador (ou improvisado), nunca deixou de dialogar com a ficção em toda a sua obra. Começando logo no início da sua carreira (logo a seguir ao documento de estreia O “Rio Liz” (1957)), com duas ficções já reveladoras de muito cinema “Um Tesoiro” (1958), inspirado no conto de Loureiro Botas (que filmaria com uma Payard de 8mm) e O Senhor (1959).
Ora, o conjunto de filmes apresentado pelo festival dirigido por Miguel Dias, Nuno Rodrigues e Mário Micaelo, sublinha precisamente essa “singularidade do cinema de António Campos”, que destaca Tiago Bartolomeu Costa, coordenador do projecto FILMar, da Cinemateca Portuguesa – Museu de Cinema, numa pequena entrevista através de email (ver entrevista), num acervo que integra o vasto programa de recuperação e preservação do cinema português que será a levado a cabo ao longos dos próximos anos pela Cinemateca Portuguesa – Museu de Cinema.
Do material recuperado pela Cinemateca constam estas sete curtas metragens: realizadas entre 1958 (“Um Tesoiro”) e 1976 (“Paredes Pintadas da Revolução Portuguesa”), passando, naturalmente, por “Almadraba Atuneira, uma pequena jóia de 1961, “Gente da Praia da Vieira” (1975) (este mais longo, com 71 minutos), mas também o magnífico “A Invenção do Amor” (1965), numa surpreendente combinação do documento com a ficção. O seu estilo completa-se com o documento local e arquitetónico de “Leiria” (1960), com diversas vistas da cidade, das feiras, das gentes, o progresso tecnológico, o desporto e a cultura, em lentas panorâmicas. E e ainda o fôlego inesperado da ficção nesse diálogo magistral entre a religião e o naturalismo de um parto em “O Senhor”, onde não serão alheios momentos ‘eisensteineanos’, conferidos pela montagem, mesmo, talvez, sem Campos conhecer a cena mítica da manteigueira, em “A Greve” (1925). 
É essa proximidade e observação de modelo realista que se sente na obra de António Campos, em que este funcionário público, com formado no teatro, explode para o cinema acercando das gentes, dos locais, em particular da faina da pesca na zona litoral, como sucede em “Um Tesoiro”, “Almadraba Atuneira” ou “Gente da Praia da Vieira”, apesar da sua visão “não se extinguir na sua relação com o mar”, conforme recorda Tiago Costa, mas também numa certa dimensão social, “traduzida por miséria, ausência ou poucas condições de vida”. E até pela cena central dos atuns presos na rede, poderia indagar-se se Campos conheceria o filme de Rossellini, “Stromboli” (1950), cujos ecos dos gestos dos pescadores se repetem na Ilha da Abóbora, no Algarve, em “Almadraba Atuneira” (1961). 
Ao longo de mais de três décadas, António Campos filmou a região de Leiria, de onde era natural. Entre o final dos anos 50 (“O Tesoiro”, de 1958) e até ao início dos anos 90, onde começa a dar expressão a uma ficção que nunca deixou de estar ligada a uma forte componente de realidade da sua gente e da sua terra. “A Tremonha de Cristal”, em 1993, seria a sua derradeira contribuição, exibida na 22.ª edição do festival da Figueira da Foz, onde recebeu uma menção honrosa. E onde tivemos a oportunidade de conhecer António Campos.
Ao avaliarmos este programa de filmes, percebe-se, por um lado, a sua unidade geográfica e temática, em torno dessa proximidade com o mar e com as gentes da sua terra, mas também um estilo que nunca se separa de um certo realismo, quase sempre de mãos dadas com uma certa naiveté, embora com uma certa proximidade natural ao neorrealismo italiano. Mesmo que se não esteja alheado de um lado de intervenção política: vejam-se os casos de “Praia da Vieira”, um relato que se apropria de sequências dos filmes “Um Tesoiro” e “A Invenção do Amor”, incluindo uma pequena aparição do próprio Campos, além do grupo de teatro (do Orfeão de Leiria) e de locais que dramatizam cenas da luta urbanística. 

“Falamos de Rio de Onor” (1974), filme de António Campos
Verdadeiramente singular, esta adaptação do poema de Daniel Filipe — numa bela conversão em Ultra HD e restauro de som, será talvez a surpresa mais saborosa desta retrospectiva — com assinatura da fotografia de Acácio de Almeida (sendo a imagem a preto a branco captada por António Campos), revelando algumas das mais belas vistas de Lisboa desse ano de 1965, registando as Avenidas Novas (apenas dois anos depois dos “Os Verdes Anos”, de Paulo Rocha) e o recém-construído bairro dos Olivais. Um filme que seduziu também a actriz e realizadora italiana Alice Rohrwacher (“Feliz como Lázaro”, 2018), que o descobriu quando estudava em Lisboa, em 2002, e que teve “a estranha urgência de declamar esse poema a toda a gente”, conforme referiu num texto publicado na apresentação do filme de Campos no Il Cinema Ritrovato, em 2020, em Bolonha. Desde logo pela forma curiosa moderna como introduz um registo de ficção, um filme pouco visto e ainda que pueril pelo romance proibido entre dois jovens, perseguido pela Polícia de Costumes por ‘atentado contra a moral pública’, seguramente próximos do casal de “Os Verdes Anos”, na mesma zona das Avenidas Nova. 
É nesta oportunidade de encarar o cinema de António Campos dentro do seu contexto que melhor se pode avaliar o peso incontornável da sua obra no domínio do nosso património cinematográfico. Sim, um “tesoiro” que importa partilhar. 

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