6 Jun 2022, 0:00
173
Por Gustavo Pires *
A referência é da Revista Expresso de 2022-06-04 e o problema é o título da prosa quando sugere aos leitores que a competição da NBA é "muito mais que um jogo". Claro que o articulista como tantos outros que, por meros efeitos mediáticos, utilizam frases semelhantes está equivocado. O jogo, enquanto competição que é: (1º) Do ponto de vista axiológico, higiénico ou pedagógico, como explanou Ballexserd (1762) e, de um modo geral, os ginasiarcas que se lhe seguiram; (2º) Do ponto de vista fenomenológico enquanto força vital como defendeu Nietzsche (1872), ou; (3º) Do ponto de vista do instinto lúdico no pensamento de Karl Groos (1901), é o fio condutor da explicação ontológica, para utilizarmos uma feliz expressão de Gadamer (1960) para quem jogar não carece ser entendido como uma espécie de atividade. Quer dizer, o jogo, para além das atividades em si, na sua natureza, explica a evolução da vida porque esta lhe é consubstancial. Por isso, a dinâmica ontológica do jogo, quer interna, quer externamente, está presente nas mais diversas organizações e eventos da vida humana que terão tanto mais sucesso quanto forem capazes de preservar e respeitar a axiologia do jogo no seu processo de desenvolvimento.
Por isso, quando no desporto se presume que a competência e o sucesso estão na capacidade de burocratizar de acordo com a configuração máquina ao ponto de se envolverem as Missões Olímpicas num figurino militarista de parada porque se imagina que aquelas missões, para “épater la bourgeoisie” “são muito mais do que um jogo”, o resultado é a destruição da ludicidade dos comportamentos e a demonstração cabal do baixo nível cultural dos dirigentes desportivos. Veja-se que a NBA tem um extraordinário êxito à escala mundial porque, interna e externamente, direta e indiretamente, sempre soube privilegiar a ontologia do jogo no conceito do desporto que pratica.
Nenhum plano, programa, projeto, recomendações gerais ou especiais, da economia ao lazer, terá alguma vez êxito se não estiver envolvido numa visão ontológica do jogo considerando quer a sua origem biológica quer a sua transmutação sócio-histórica.
Uma visão do desporto, que no desprezo pela prática desportiva de base de caráter recreativo da generalidade das populações, se sustenta exclusivamente no estafado pregão do “queremos mais dinheiro”, na ilusão de que nas sociedades liberais de economia de mercado, à imagem e semelhança daquilo que acontecia na antiga RDA, é possível produzir resultados desportivos em “tubo de ensaio”, não passa de uma alucinação. Desde logo porque, hoje, as sociedades democráticas não suportam modelos mecanicistas idealizados de encomenda por uma superestrutura de dirigentes caducos e ignorantes, programados por uma estrutura intermédia de lanistas acéfalos e acomodados e, finalmente, executados por um centro operacional constituído por um exército de atletas dopados por regimes de treino físico e psicológico que lhes sugam o sangue e destroem a alma.
É necessário e urgente afastar uma geração de dirigentes desportivos com raízes ideológicas no materialismo estalinista e maoista dos anos sessenta e setenta que se habituaram a viver segundo a coreografia do socialismo científico que, hoje, é responsável pelo desperdício financeiro e pela mediocridade ética do desenvolvimento do desporto em vários países do mudo. É responsável por um desenvolvimento que despreza uma visão integrada, sistémica e participada do desporto, do ensino ao alto rendimento, passando pela generalização da sua prática.
O que muito países por esse mundo fora necessitam é de uma visão política de carácter humanista que cumpra o mais nobre ideal da filosofia de vida do Olimpismo que tem por missão colocar o desporto, enquanto jogo que é, ao serviço do desenvolvimento humano.
*Professor jubilado da Faculdade de Motricidade Humana