24 Nov 2023, 0:00
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A escolha nunca foi pacífica. Ora porque era um desporto pouco conhecido, ora porque era uma atividade praticada por pessoas “de mau aspeto”, ora porque o futuro era, afinal, não ter futuro. Há 14 anos, o jiu-jitsu estava associado a modalidades mais violentas. Mas nada tinha a ver. “É um desporto físico, é certo, mas não existe a intenção de magoar. Tem um aspeto social que promove o convívio e a confiança entre todos”. Mesmo assim, a opção nunca foi olhada de forma consensual pelos pais e até por amigos mais próximos. “Mas nunca desisti”.
Pedro Ramalho tem hoje 29 anos e é duplo campeão mundial de jiu-jitsu em duas das três competições mais importantes do mundo – a World Professional Jiu-Jitsu Championship e a da JJIF (Jiu-Jitsu International Federation).
Aos 15 anos, depois de perceber que não dava “uma para a baliza” no futebol, depois de ter experimentado e ter confirmado que os pés não eram mesmo o seu melhor, decidiu aceder ao convite “insistente” de um amigo.
“O meu melhor amigo começou a treinar e foi aquela coisa típica de fazer algo de diferente. Estava sempre a dizer-me para aparecer, até que, um dia, decidi ir”. Conta-nos que desde o primeiro treino sentiu algo demasiado forte: amor. Sem medo de o assumir. “Amei mesmo. Comecei de nem querer saber até treinar várias vezes por semana.” O motivo, assume, é simples: não é um desporto somente de corpo, é uma modalidade “muito inteligente, que não é feita apenas de reações, mas que nos leva a pensar dentro e fora desta luta”.
Até porque, dizem, o jiu-jitsu é o “xadrez humano”. “É como se estivéssemos atentos ao que o adversário vai fazer a seguir, mas já soubéssemos a jogada seguinte”. Tal como no xadrez, basta seguir o jogo. E tentar fazer uma espécie de xeque-mate ao adversário.
Pandemia enriqueceu o curriculo
Não haverá história mais rápida na entrada em competição. Pedro começou a treinar num dia e, passadas três semanas, estava já em competição. “Ouvi o treinador a pedir aos atletas para levarem o dinheiro para a inscrição no campeonato. Eu também levei. Não havia competição para mim nessa altura, era demasiado novo, mas acabei por ir com eles”, revela Pedro “Paquito” Ramalho (nome pelo qual também é conhecido). “’Apanhei’ muito nesse campeonato, não ganhei nenhum combate, mas valeu pela experiência”, ri. Foi assim durante dois anos: lutou e perdeu tudo. Mas desistir era verbo que não existia no léxico de um jovem que vivia apenas para o jiu-jitsu. “Nunca liguei muito à escola, chegava a casa e passava horas a ver combates na internet”, confessa. Viu e reviu, reviu e viu, e nunca se cansava.
A primeira vitória foi numa luta nacional, aos 16 anos. “Valeu a pena apanhar durante todo aquele tempo”, reforça. Ganhou depois o Europeu de Juvenis e é aí que tudo se torna sério, onde o “compromisso e a palavra” que o treinador lhe incutia nos treinos ganhou mais foco. Aumentou o número de treinos. Aumentou o número de horas de competição. Aumentaram os vídeos de Youtube. E a pandemia foi a melhor altura da vida dele.
“Porque, como vivia com o meu melhor amigo e ambos treinamos, passámos os dias a combater e a aperfeiçoar as técnicas”, reitera. Quando tudo parou, as competições também pararam. Foram anos em que as competições anuais não tiveram lugar, mas onde manteve a rotina dos treinos. “Porque quando me dedico a fazer algo, faço tudo ao meu alcance”.
De engenheiro de materiais a atleta
Mas o que leva um verdeiro campeão a ser também engenheiro de materiais? Ou melhor, o que leva um engenheiro de materiais a querer dedicar a vida ao jiu-jitsu? A história é curiosa, passa por raspanetes da mãe e autocarros que se tornaram centros de estudo. Em circulação. “Eu sempre tirei notas horríveis, porque só pensava nisto. Tinha imensas guerras com a minha mãe, que me obrigava a estudar. Porque para a minha mãe isto não era profissão”, assume o atleta de alta competição. Um dia, conta, a professora de matemática disse o que mais temia: “com as notas que tens, vais reprovar. Para passares de ano precisas de um 17 ou 18 a esta disciplina”.
Ficou a pensar naquilo. Com o jiu-jitsu sempre a acompanhar, estudou “como nunca fiz na vida”. Estudava nos intervalos, estudava a caminho dos treinos, revia a matéria a caminho de casa. Meteu na cabeça que conseguia. E conseguiu o 18 que a disciplina exigia. Terminou o 10.º ano com uma nota de 10 e, dois anos depois, o 12.º foi concluído com uma nota final de 18.
“Consegui entrar na faculdade, por imposição dos meus pais. Era algo que não queria, mas eles só me deixavam continuar se fosse para o ensino superior”. Escolheu Engenharia de Materiais, porque gostou do curriculo. A “minha mãe deixou-me em paz, porque me disse que me deixava fazer tudo se continuasse a passar de ano”.
Hoje, Pedro vive apenas do jiu-jitsu. Com uma academia (a meias com outros atletas), tem a seu cargo (e dos restantes colegas) 260 atletas, “entre homens, mulheres e crianças”. Tem registado uma maior procura de mulheres e as crianças continuam a ter a fantasia de entrar num mundo encantado que pensavam só existir na televisão. “O que me enche de orgulho é que, hoje, olho para os miúdos e estão já a anos-luz do que eu era, na idade deles”. E ainda acrescenta: “se eu consegui chegar aonde cheguei, imagino onde chegarão estes pequenos”.
Post-Scriptum: Abu Dhabi. World Professional Jiu-Jitsu Championship. Emirados Árabes Unidos. 2023. Calor. Verão. Pedro sabia que competir ao mais alto nível não é fácil, mas a confiança era mais que o medo. Sem competir há algum tempo, partiu na busca do título. Título que tinha um sabor especial. “Quando era adolescente via vezes sem fim uma final em Abu Dhabi, vi um milhão de vezes e tinha um sonho, dizia para mim: ‘um dia hei-de ganhar este campeonato”. Pedro Ramalho é faixa negra, integrava os atletas com menos de 77kg. Entrou em campo. Lutou com o sonho de menino no olhar, ultrapassou obstáculos. Fez o melhor que soube, suficiente para conseguir o título mundial. “Eu queria muito isto e consegui”, orgulha-se, hoje, com a faixa e a medalha de campeão ao peito.
(In AgoraPorto)